segunda-feira, 1 de junho de 2009

Um conto...








O 5° MOVIMENTO



"O que você sente quando escuta essa música?". A pergunta ecoava em minha mente sempre que lembrava daquela tarde de quinta-feira. A chuva caía monótona e o céu cinza abraçava a ausência de nuvens de qualquer cor. Aquela seria mais uma tarde, porém a última. Voltando no tempo, lembro que tudo começou numa quinta-feira,e se tornou meu dia predileto. Nos outros eu não existia, nos outros eu não queria existir. A cada sete dias nos encontrávamos e foi assim por três anos consecutivos.

Era o dia do fim. E meu sentimento corrosivo terminaria. Nossa alcova era num quarto de um velho sobrado no centro da cidade. O caos urbano e todo o barulho não nos incomodava.Nada externo ameaçava as horas que eram só nossas.

Eu sempre chegava primeiro. Abria a única janela do quarto, tirava os sapatos e me despia.Um ritual que me preparava pra o que viria depois. Sentava-me numa poltrona de veludo vermelha próximo à porta, esperando por ele. Às vezes eu sentia arrepios oscilantes pelo corpo, provenientes de brisas que percorriam o quarto. Minhas mãos quase frias percorriam meu corpo, excitando-me ainda mais por saber que logo seria tomado por ele. E eu o esperava...

Sua chegada era quase sempre brusca, assustando-me algumas vezes. Mas seu sorriso e sua palidez fantasmagórica de alguma forma me acalmava e logo eu já estava em seus braços. Sua pele fria encontrava calor na minha.

Ouvíamos sempre a melancolia morta de Janis Joplin e Layne Stanley. Eram as únicas vozes que ele gostava. E eu gostava da sua voz como plano de fundo para Beethoven e sua nona sinfonia. E mais, eu ardia de desejo pela dor que ele me proporcionava. Seu corpo me prendia como num calabouço, mas me devorava suavemente. O prazer perdurava como nossos olhares um pro outro depois do orgasmo.

E ele sempre soltava os longos e escuros cabelos, eu gostava de vê-os grudando em suas costas e peito suados.Os fios ganhavam mais escuridão e brilho. Adorava tocar em seu corpo úmido. E os meus cabelos ele prendia e dizia que 'esse manto vermelho e maléfico não deve esconder seu corpo de mim, nenhuma parte dele!'. Meus seios e costas eram o que ele preferia em meu corpo. Eu ria de sua frase e ele me beijava.

Como eu ele também odiava o sol e as multidões. E o que mais gostávamos era dos instrumentos de corda e do frio. Os diversos sons me protegiam, e eu so queria estar com ele naqueles instantes.

Mas era o fim. Aquela tarde seria a última vez. Chovia, o céu cinza mostrava-se mais uma vez ausente de nuvens. Os sons do dia estavam sempre lá, e parecia intensificar quando íamos nos encontrar. Dessa vez ele chegou primeiro. Espalhou melissas no quarto, abriu a janela e com as vozes mortas me aguardava.

Então eu cheguei como uma neblina, um longo abraço e sua nudez me envolveram, E eu disse que aquele era o último dia do nosso relacionamento. Minha rejeição não provocou sua voz, mas calou as outras. E eu ouvi o silêncio cortante de seus lábios e do quarto. E não haviam palavras nem lágrimas.

"O que você sente quando ouve essa música?". Ele falou enquanto me olhava com olhar quase sombrio.Mas eu não queria ouvir aquilo. E nem podia. Baixei a cabeça com impaciência e tentei não ouvir cobrindo os ouvidos com as mãos. "Ouça!". Ele insistia. E eu fui até a janela, tentando ouvir o barulho da rua na tentativa de evitar escutar o que ele queria. "Não precisa ser assim.Por favor, não faça isso!". Eu tentava evitar seu olhar.

A música que eu ouvi era muito intensa e envolvente. Conhecia muito bem a melodia, mas queria evitar. Não queria ouvir dele. Mas não conseguia mais fugir e nem queria mais, estava totalmente vulnerável. O som vinha borbulhante e pulsava freneticamente de suas veias quentes. Disposta em várias melodias e tempos, em compassos vermelhos,formando um caos delirante e totalmente harmônico. Um convite do qual eu recusei por três anos.

"O que você sente quando ouve essa música?".

O corpo pálido e frio eu deixei na cama, envolvido em lençóis negros. O gosto do seu sangue eu sinto até hoje em meus lábios...



3 comentários:

  1. LINDO





    SEM PALAVRAS, JÁ Q NÃO TENHO ESE DOM, SEGUNDO REIFFER TENHO Q ME CURVAR DIANTE DE UM ESCRITO TÃO MAGNÍFICO E TÃO BEM ESCRITO, SEM SER JAMAIS VULGAR.
    E AS MINHAS VI´RGULAS ERRANTES JAMAIS SERÃO FATOR DETERMINANTE DE CENSURA DE UMA OBRA DE BELEZA TÃO........................
    TÃO SEM ARGUMENTOS ESTOU,


    PARA DESCREVÊ-la!



    lindo lindo conto.

    emocionou uma alma bebada!

    Lilene Leverdi.

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  2. Um conto digno de uma escritora dotada de enorme sensibilidade... "...esse manto vermelho e maléfico não deve esconder esse corpo de mim..." Adorei, Agnes, adorei! Fiquei muito emocionado, muito mesmo, amiga. Parabéns, você está cada vez melhor, querida. 1 beijo soturno do sempre amigo paulistano,

    the ^..^ Osmar

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