quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A MENTE E O PROBLEMA

Moravam juntos há três anos, e era noite de comemorar, um ritual que fazia todos os anos. Ela vestiu-se como de costume, sempre de preto e salto alto, cabelos despretensiosamente soltos e ondulados, vermelhos como sangue. Boca rosada e brilhante, olhos pintados de preto e um perfume que era só dela. Ele adorava. Ela sabia disso e não o poupava dessa provocação. Nem de outras. Fazia tudo por ele e para ele. Seu amor era visível e desesperado. Mas Marcelo parecia estar mais preocupado com o prazo para entregar um novo livro, e continuava enfiado no escritório escrevendo sem parar. De vez em quando Melissa chegava até a porta e o olhava com ansiedade, mas ele a ignorava.

Vinte e duas horas, vinte e três. E nada dele demonstrar que ia finalmente se arrumar para curtirem a noite. Ela demonstrava sinais de desânimo e desabou no sofá, sem os sapatos. Chamava por ele, que só respondia que já estava quase terminando. Perguntava a cada dez minutos, e a resposta era sempre a mesma. Melissa pegou uma garrafa de vinho tinto, despiu-se e foi até ele. Ele não ia resistir! Mas resistiu. Foi frio. E até mesmo ácido. Disse que tinha compromissos, e que o dinheiro que ganha paga aquele vinho e tudo em volta deles. Ela tinha que entender. E parar com essa bobagem de datas.

Ela saiu do escritório aos prantos, mas Marcelo parecia pouco se importar. Depois de alguns minutos ele foi ver onde ela estava. A imagem o fez permanecer por algum tempo de pé vendo-a se banhar com o vinho na varanda do apartamento. Nua, com a pele molhada e ligeiramente rosada pelo líquido sem se importar se algum vizinho a via. Nesse instante Marcelo a quis, mesmo com trabalho a fazer. Mesmo estando numa varanda, com pessoas podendo vê-los. Não importava, ele a queria aquele momento! Uma chuva fina e fria começou a cair suavemente enquanto eles transavam, o chão molhado de vinho e água fria acariciava seus corpos.

Nas noites seguintes ele a ignorou totalmente. Ela fingia entender seu compromisso, mas no fundo estava magoada por tanta indiferença. Era sempre assim, ele sempre estava ocupado com um novo trabalho, e ela, como sempre ficava em último plano. Melissa fez uma viagem no tempo e constatou que sempre foi assim, desde quando se conheceram. E provavelmente isso nunca mudaria. Ela sempre fez tudo acontecer entre eles. Desde o início. Isso a deixou profundamente infeliz. Constatar isso a fez pensar em como não estar tão obcecada por Marcelo. Pensou em ter um filho, e em outras coisas que a fizesse se desprender um pouco dele. Mas desistiu. Nada ia adiantar. Ela só queria tê-lo mais próximo. Ele era tudo que ela queria, E queria inteiro, completo.

Acordou e viu que ele dormia ao seu lado. Sem blusa, usando apenas uma cueca cheia de caveiras. Ela adorava aquela. Melissa sempre pedia que ele a usasse. Às vezes ele a atendia. Ficou olhando o seu rosto, que parecia tão relaxado naquele momento. Ouvia sua respiração tranquila. Ficou imaginando se ele estaria sonhando. Será que ela estava nele? Era muito cedo e ainda não havia amanhecido. Ela o cobriu e beijou os lábios dele carinhosamente. Foi à varanda respirar o ar das primeiras horas. E foi então que descobriu como teria Marcelo inteiro pra ela. Sem compromissos, sem datas, sem prazos. Sem pressão. Mas sua idéia cheirava a sangue. E ela hesitou por um instante.

As oito ele estava tomando café, silencioso como de costume, enquanto ela comia suas torradas e o olhava com olhos sombrios. Foi ao escritório e se trancou lá. Provavelmente Melissa só o viria depois das quatro horas, quando finalmente ele sentia fome. Ela pegou o telefone e fez a ligação que mudaria sua vida. Estava tudo certo, até o fim do dia ela teria Marcelo só pra ela. Ia doer, mas tinha que ser assim. Passadas duas horas, ela começou a se sentir estranha, e viu que precisava repensar. Será que ia adiantar? E se fosse pior, se ele se afastasse ainda mais dela? Dúvidas de todas as cores invadiram a cabeça dela, que, perturbada, tinha que decidir se ia adiante com o plano.

Ela passou a caminhar de um lado pra outro da casa, tomada por uma angústia e desespero que chamou a atenção de Marcelo quando ela esbarrou numa mesinha de canto. Ele foi até ela e a encontrou desfigurada, pálida, com as mãos frias. Disse a ele que era apenas TPM e que estava tudo bem. Ele voltou ao escritório, sem se desviar mais.

Passaram-se as horas, o fim do dia estava chegando, e ela precisava decidir se queria continuar ou não com o plano. Pegou o telefone, as mãos tremiam, mas enfim conseguiu fazer a ligação:

_ Oi, sou eu. Eu pensei melhor e... Não faça mais isso, eu não quero mais que você faça isso! Eu o amo e posso continuar me alimentando do pouco tempo que ele tem pra mim. Não quero mais que você faça isso!Tive um dia infernal até chegar a essa conclusão! Te pago, mas suspenda a ação, por favor!

Desligou o telefone, jogando-o no chão. Agachou-se e chorou com as mãos no rosto. Sentia-se aliviada, afinal. Teria Marcelo do jeito que sempre teve. Porém sua breve alegria foi interrompida. Ele estava bem atrás dela e ouviu tudo! Ela levantou-se de sobressalto, assustada, enxugando as lágrimas que começaram a jorrar em seu rosto.

Marcelo estava pasme, olhando-a com perplexidade. Perguntou-lhe o que ela pretendia, o que significava aquela ligação. Melissa sentou-se, encruzou as pernas e disse que não era nada e que já estava resolvido. Disse que o amava e que não se importava se ele não tinha tempo pra ela. Ele permaneceu de pé e agora se colocou em sua frente. Sua face estava transformada. Queria saber o que ela havia planejado. Exigia! Segurou-a pelo cabelo com violência, sacudindo sua cabeça pra frente e pra trás.

_O que você ia fazer? Mandou alguém me matar? Foi isso?

Melissa apenas chorava e dizia que o amava. Ele a soltou, respirou fundo, sentando-se. Ela ficou caída no chão, mas levantando-se em seguida. Sentou-se ao seu lado, arrumou os cabelos e olhando pra ele disse:

_ Eu ia mandar um médico amigo meu arrancar suas mãos... Assim você não ia mais escrever e teria todo tempo do mundo pra mim. Mas desisti, por que amo você. E te quero de qualquer jeito. Foi isso que fiz.

Marcelo a olhou e ela viu o horror dentro dos olhos dele. Não imaginava que ela teve essa idéia. Levantou-se e se trancou no escritório.

Ela ficou lá, sentada, sem saber o que ela faria em seguida. Será que ia deixá-la? Será que ia bater nela até que desmaiasse? Ela não sabia...


Nos dias e noite seguintes ele permaneceu trancado, escrevendo. Agora ele trancava a porta com chave, e dormia lá mesmo. Melissa virou um fantasma naquele apartamento. Ele ouvia seus passos, sentia seu perfume, e a desejava às vezes.

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