sábado, 18 de setembro de 2010




CONSENSO ILUSÓRIO


Ele passava os dias escrevendo em seu computador. O som dos passáros e do vento o distraia por vezes. Parava para um café, enquanto olhava pela janela a amplidão verde que rondava sua casa. Quase nunca saia de casa, a menos que precisasse. Seus dias eram feitos de palavras digitadas num tela, o que lhe proporcionava intenso prazer. Ele tinha a vida que sempre quis. 

Quando o sol morria, ele também finalizava sua atividade. Tomava um longo e reflexivo banho, momento precioso para sua alma. Preparava sua refeição cantarolando músicas que ele nem sabia se existia. Sua casa silenciosa era seu templo, e lá ele tinha tudo que precisava.

Sempre depois de ver um filme, ele se recolhia. Seu corpo deslizava suave na cama, envolvendo-se em lençóis acolhedores. Sua mente entrava em repouso rápido, e logo ele adentrava em sonhos. Neles, ele  era visitado por alguém que beijava-lhe os pés. Ele tinha esse sonho recorrente sempre em dias de muita tranquilidade e muitas letras na tela.

Acordava naturalmente. Sem pressa. Levantava-se devagar, acordando cada parte do seu corpo alongando-se enquanto bocejava. Seu tempo era seu, não tinha agendas ou compromissos. Mas a solidão às vezes o assombrava. Pensava na pessoa dos seus sonhos. E no beijo em seus pés. Será que essa pessoa existia? E porque aparecia em seus sonhos com frequência? Seria uma mensagem?

O dia segue como sempre. Letras, café, música, silêncio... O entardecer é o princípio de seu ritual de descanso. Ele não era metódico, era feliz com sua rotina sem rotina. Dormir era mais que descansar, era encontrar com alguém que fazia parte de seus desejos,alguém que sempre vinha, e ele voltava à cama.

O sonho... A pessoa agora não apenas beija seus pés, mas toca seu corpo. Seus lábios, seu sexo. Envolvendo-o com mãos e lábios famintos.Ele se rende ao toque, entregando-se ao prazer daquele ser que já lhe era familiar, e que desejava ardentemente. Os olhos brilhantes ofuscaram os dele, fazendo-o despertar como de um pesadelo. O coração acelerado, o corpo suado e com ereção. A boca salivando. Arrepio na pele.E a sensação da presença de alguém que só o visita em sonhos. Ele levanta-se e percebe a janela aberta, como se alguém estivesse saído por ela. A sensação da presença agora estava se distanciando.

Ele não conseguiu voltar a dormir naquela madrugada.Viu o dia nascer e percebeu que fazia muito tempo que não presenciava aquele espetáculo de luz. Momento breve.Que não o entusiasmou. Mesmo com a beleza do dia chegando, os pensamentos dele reportava-se ao sonho recorrente, que agora ganhou novos contornos. Intensos e muito reais. Fazendo com que ele quisesse voltar a dormir. Tentou inutilmente. Seu sono era noturno.

O dia passou com lentidão e ansiedade. Quando finalmente a noite caiu, ele tentou relaxar seguindo sua rotina até o momento de dormir. Desejava voltar a sonhar. Precisava sentir de novo tudo aquilo. Queria se entregar aos prazeres daquele sonho. Queria ter aquele corpo e seus lábios. Desejava vorazmente aqueles instantes novamente. Mas seu sono não teve sonhos. E a frustração ao acordar perdurou ao longo do dia.

Após uma semana de desejos e frustrações, e com sono sem sonhos, ele parecia se conformar com o abandono. A pessoa não mais veio vê-lo. Passou a odiar o momento de dormir, amaldiçoando cada hora da madrugada. Decidiu dormir o mínimo possível. cafeína e outros estimulantes em excesso passaram a fazer parte de sua dieta, e o sono se tornou escasso. Acordava se sentindo mal, o corpo dolorido, e passou a não mais apreciar os sons da natureza e do silêncio de sua casa. Seu rosto bonito estava desfigurado pelas noites de pouco sono. A solidão tomou conta de sua alma, retirando sua paz.

Num momento de muito café e amargura, percebeu que era inútil se rebelar contra a natureza. Reduziu os estimulantes e aos poucos seu sono voltou ao normal. Noites intensas de descanso fizeram parte de seus dias, e ele parecia não mais lembrar da pessoa que o visitava  e que o abandonou. Sentia-se bem fisicamente, mas a solidão noturna ainda o afligia, porém em pequenas proporções.

Era inverno finalmente, o frio acariciava sua pele como uma massagem de mãos frenéticas. Resolveu deitar-se mais cedo e aproveitar o sono se aquecendo com roupas e cobertores, depois de um chá quente.Sentia sua alma aquecida e finalmente tinha um pouco de paz.Seu rosto não mais carregava as marcas dos excessos enquanto queria estar insône.Tudo parecia normal.

A penumbra do quarto criava formas nas paredes que recebiam frestas de luz. Observar essas formas eram como contar carneirinhos, ele logo adormecia. Mas não nessa noite. No canto do quarto, próximo a única janela, ele visualizou algo que mais parecia alguém. Olhou com mais atenção e constatou que de fato era uma pessoa. Antes de esboçar qualquer reação, ele viu essa pessoa aproximar-se, mas não andando, e sim flutuando em sua direção. Ele se assustou ao ver que era a pessoa do sonho!

Ele não conseguia falar, nem se mover, parecia paralisado. A pessoa o olhou com os mesmos olhos brilhantes.Sentou-se ao seu lado e tocou seu rosto. Ele se afastou bruscamente. A pessoa não pronunciou nenhuma palavra, mas ele entendeu que não deveria ter medo.Então seu semblante aterrorizado voltou ao normal. Ele sentiu novamente o toque em seu rosto, em seus lábios, em seu corpo. Sentiu as unhas arranhar profundamente seu pescoço, sentindo o sangue escorrer. Mesmo assim, não se assustou. A pessoa lambeu seu pescoço com urgência, fazendo-o sentir o roçar de presas em sua pele!

Nesse momento ele levantou-se e percebeu quem estava ali. E o que queria. Pôs a mão no pescoço sangrento e dolorido, inundado pelo medo. O líquido vermelho espalhava-se em sua roupa. A pele branca realçava o vermelho, deixando-o com o rosto mais bonito, mais vivo. Ele era lindo, e sangrando, sua beleza estava mais evidente. Percebeu que não adiantava fugir e parecia aceitar seu destino, porém, a pessoa levantou-se, contemplou seu rosto por um longo tempo e foi embora...

Ele permaneceu ali por muito tempo, sentindo medo, alívio, e dor. Voltou a ser visitado, apenas em sonhos...

3 comentários:

  1. Seu conto realmete me deixou inquiéto! Quem não gostaria de ser visitádo desta forma à noite? Tenho sonhos recorrentes, como você sabe, e nestes sonhos sou perceguido por um lobo. Acho que é por isso que tenho vontade de uivar quando faço amor. kkkkk

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  2. ...
    Quando acordava no começo do dia pedia para não sonhoar mais com essa mesma figura,hoje ainda sonho...mas ele já não faz parte desse meu mundo imaginário!
    E a realidade agora se mostra melhor do que nunca!
    Belo e delicioso conto!
    Parabéns!

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  3. Marco... VOCÊ É O LOBO! RSRS! Obrigada por sempre comantar e me incentivar!

    Obrigada Renato, adoro seus comentários!Fico sempre muito feliz com você aqui também!

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